O ano era 64 depois de Cristo, as ruas de Roma encontravam-se absolutamente em chamas. O fogo se alastrava por dez das 14 comunidades da cidade e durou quase uma semana inteira para ser controlado. Muitas mortes ocasionadas e uma destruição completa da capital do Império. Para a história, Nero, o imperador da época, ficou como o culpado pelo incêndio e o motivo torpe mais comumente retratado foi a sua vaidade para fazer valer o seu plano arquitetônico e construir o seu novo complexo palaciano, que havia sido indeferido pelo senado romano. Essa história insana poderia ter ficado no passado e ser um exemplo besta de como a vaidade humana pode ser prejudicial para todo um povo.
A super taxação imposta pelo governo norte-americano ao Brasil parece ter uma raiz mesquinha, tal qual a de Nero, e passa por um perigoso processo de individualização de relações em sobreposição aos interesses dos Estados. “Derrubem o processo contra Bolsonaro, derrubamos as tarifas” foi a frase dita pelo estrategista de Donald Trump, Steve Bannon para justificar um aumento abusivo de 50% dos produtos de toda uma cadeia nacional, em detrimento de um processo legal, que corre em justiça de um país soberano, em que o réu tem todas as garantias constitucionais de defesa e que ainda não tem decisão final. Um plano incendiário que prejudicará 220 milhões de habitantes.
A presença do filho de Jair Bolsonaro, nos Estados Unidos, e a relação próxima do deputado eleito por São Paulo com o estrategista de Trump levam a crer que o plano não foi unicamente pensado pelos norte-americanos. O próprio Eduardo Bolsonaro, em debate televisivo na CNN, com o deputado Guilherme Boulos, fez coro à decisão de Donald Trump e acusou o governo brasileiro de ser o responsável pelo ocorrido, por ser, segundo ele, um regime de exceção democrática, mesmo ele tendo sido eleito nesse regime.
O anúncio ter sido feito durante a Cúpula dos Brics, no Brasil, também tem um componente estratégico. Tem cheiro e gosto de álibi, para que não se fique somente no plano das relações individuais. O grupo de países que congrega o mundo emergente é uma ameaça econômica às superpotências pela presença da China, como grande líder do ajuntamento. Nesse ínterim, a guerra comercial sino-americana vira pano de fundo para uma justificativa mais plausível para a medida e fugir dos chavões de que a decisão foi eminentemente política. Consegue-se uma saída para caso o plano não vingue da maneira correta. Seriam os cristãos para Nero, culpabilizados pelo augusto imperador, quando apontado como o culpado.
A relação econômica Brasil e Estados Unidos é superavitária para os americanos. Em nenhum dos anúncios anteriormente feitos pelo governo Trump houve sequer qualquer menção mais negativa ao Brasil ou ameaças mais claras. De um inofensivo país àquele que recebeu a maior punição tarifária tem um caminho muito longo e completamente ilógico do ponto de vista econômico, o que faz valer cada vez mais a tese de uma retaliação política. Partindo dessa premissa, que parece muito verdadeira, o efeito eleitoral do plano começa a dar as caras e os trackings de acompanhamento dos cenários também começam a apontar para um mesmo sentido.
Com a situação econômica brasileira bastante difícil, o eleitorado se mostra cada vez mais infeliz com a polarização política Lula x Bolsonaro. Por mais que apenas os dois nomes estivessem consolidados na consciência popular, há uma vontade por algo novo e que rompa essa estrutura, que até agora mostrou sete anos de pouquíssima mobilidade social ou conquistas. No frigir dos ovos, ambos os governos não conseguiram entregar uma vida melhor aos brasileiros e sobrevivem muito do que representam ideologicamente e como posicionamento para as pessoas. São dois polos antagônicos, com visões de mundo diferentes, mas que não conseguiram mudar as realidades dos brasileiros e apostam nas narrativas de projeção de futuro para serem escolhidos. Lula, por ser o presente, sofre mais com esse impacto.
Esse cenário, com a situação política incerta de Bolsonaro, tem feito despontar novos nomes oposicionistas e o governador Tarcísio de Freitas é visto por quase todos os especialistas em comunicação política como o nome mais apto a derrotar o atual governo. Bem pontuado nas pesquisas, de perfil moderado, identificado com o polo oposicionista, com fama de técnico e não político, e governando o maior Estado do Brasil, Tarcísio é um fortíssimo candidato para 2026, com chances reais de vencer Lula. Sua vitória, todavia, representaria um fim de um modelo de direita que foi concebido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Esse é um dos motivos mais fortes para que Bolsonaro não compre de vez a candidatura de seu pupilo. O bolsonarismo, enquanto instituição e corrente política, sairia enfraquecido com uma vitória do governador paulista. Um novo modelo seria implantado e o tarcisismo poderia surgir.
Com a crise absoluta da precificação dos efeitos da taxação, Bolsonaro volta com tudo ao cenário. Ao se colocar como um mediador para a paz do conflito, o ex-presidente vira o bombeiro para apagar o fogo ocasionado por ele mesmo. Mítico, tenta ressurgir como o único capaz de ser ouvido por Trump. Além do mais, coloca seu filho, Eduardo, na vitrine como um negociador voraz e o aponta como o verdadeiro sucessor, caso sua inabilitação eleitoral não seja revertida a tempo de estar nas contestadas urnas eleitorais no próximo ano. Vira novamente o polo opositor, sem dar sombras a seus pseudo aliados. Tarcísio, governador do maior centro exportador do País, fica entre a cruz e a espada, tendo que se apegar à narrativa de culpa do alinhamento internacional de Lula, mas precisando dar respostas ao setor produtivo do Estado que comanda.
Do outro lado, Lula, enfraquecido e sem defesa, reanima-se e encontra o adversário sonhado para a disputa. O enredo do nós contra eles ganha forma e gás, já que os Estados Unidos são a maior representação de poder de todo o globo. Brigar contra a América é lutar contra os ricos, os exploradores, o império e tudo o que mais dominante existe. É o operário enfrentando o multimilionário Trump e podendo usar suas bravatas de defensor dos pobres e oprimidos. O Pai Lula volta à cena e o espaço político para um novo nome vai ficando cada vez mais à míngua.
Quase 2 mil anos depois e no novo mundo, em dimensões diferentes, vemos um novo momento inflamável. A polarização vira novamente o centro das atenções e o noticiário só é tomado pelos posicionamentos dos dois polos. Os caminhos se estreitam e o pêndulo que mostrava um recrudescimento das labaredas antagônicas para de balançar. Um lado precisa do outro para sobreviver. Lula só é forte quando se tem um Bolsonaro para enfrentar e vice-versa. Como pontuou o genial Machado de Assis: “Há inimigos contíguos, mas também há amigos de perto e do peito”, e é justamente essa proximidade e lealdade à polarização, que não permite decifrar em qual quadrado está a relação Lula-Bolsonaro. Tudo leva a crer que são inimigos de peito.
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