Mortes de cavalos por ração contaminada deverão aumentar

Estamos com uma bomba-relógio nas mãos que não sabemos quando vai explodir.” Essa é a definição de João Pedro Gimenes Malaquias, de São José da Bela Vista, interior paulista, criador de cavalos mangalarga marchador há seis anos. Ele perdeu quatro de seus 38 cavalos em três meses, um prejuízo de pelo menos R$ 200 mil, e não sabe se outros vão resistir.

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Todos recebiam a ração para equinos da Nutratta Nutrição Animal, que teve sua fábrica em Itumbiara (GO) interditada por determinação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) por contaminação da ração. Além disso, recebeu a ordem de recolher todos os lotes fabricados a partir de 21 de novembro de 2024.

No último domingo (13/7), o ministério divulgou 245 mortes de equinos causadas pela contaminação e ainda não atualizou o número. Nos grupos de criadores, a contabilidade na quarta-feira (16/7) era bem maior: 780 mortos, 44 abortos, 517 em tratamento e 405 em observação.

Malaquias fala em “bomba-relógio” se referindo a informações recebidas de veterinários de que, mesmo após a interrupção do trato com a ração contaminada, os animais podem ter complicações futuras porque a contaminação já pode estar na corrente sanguínea.

A reportagem ouviu outros quatro criadores paulistas que perderam animais que recebiam a ração da Nutratta. Todos contabilizam os prejuízos, dizem que a morte ocorreu muito rapidamente depois dos primeiros sintomas e que a situação é inédita.

A primeira morte no Haras Santa Gianna, da família de Malaquias, ocorreu há três meses: uma égua doadora de embriões comprada por R$ 40 mil que estava prenha começou a passar mal. Não havia, então, nenhuma suspeita da ração e o animal chegou a ser operado porque o veterinário imaginou que o problema fosse a prenhez.

Duas semanas depois, um potro de dois anos e meio morreu do nada. Estava treinando num dia e amanheceu morto no pasto no dia seguinte. Pensamos que pudesse ser cobra porque ele estava muito inchado, com a barriga dura, saindo espuma pela boca e nariz.”

O terceiro caso foi há quatro semanas, quando Malaquias levou cavalos para participar de uma copa de marcha em Altinópolis. A ração já tinha sido trocada, mas uma égua de 3,5 anos começou a apresentar os mesmos sintomas. Segundo ele, o animal parou de comer e beber, ficou prostrado, parecia um zumbi, trombava com as coisas e se enrolava em arames. A égua foi tratada com muito soro, mas amanheceu morta dois dias depois com sangramento no nariz e espuma na boca. A última morte no haras ocorreu na semana passada e vitimou um potro de 2,5 anos.

Malaquias, que comprava ração de carga fechada, ficou com 210 sacos da Nutratta no haras. Ele acionou a empresa, mas não ocorreu a coleta. Diante da falta de resposta, deixou de pagar os boletos e a dívida foi parar no cartório.

O criador de cavalos Roberto Barros, de Caçapava (SP), perdeu oito animais com valor estimado de R$ 500 mil e está tratando outros dez — Foto: Arquivo pessoal
O criador de cavalos Roberto Barros, de Caçapava (SP), perdeu oito animais com valor estimado de R$ 500 mil e está tratando outros dez — Foto: Arquivo pessoal

Perda de genética

O prejuízo de Roberto Carlos Barros, criador de mangalarga em Caçapava (SP), foi ainda maior. Ele perdeu oito animais com valor estimado de R$ 500 mil e está tratando outros dez, incluindo um garanhão que sozinho vale R$ 500 mil, na tentativa de salvá-los da intoxicação. “O pior é que perdi a genética que venho selecionando há 21 anos e isso não tem como recuperar.”

Ele usava Nutratta há sete meses e diz que investiu em uma ração mais cara do que ele usava porque no ano passado houve uma seca muito forte em sua região e faltou volumoso. Amigos sugeriram, então, que adotasse a fórmula da Nutratta para suprir essa falta. Nos primeiros meses, ele ficou satisfeito com os resultados porque os animais ganharam peso e vitalidade.

Em 15 de maio, no entanto, morreu o primeiro animal que recebia essa alimentação: era uma potra de um ano e meio. “Ela só estava apática, mas logo convulsionou e morreu em meia hora. Fizemos a necrópsia que mostrou fígado, rim e pulmão destruídos. Aí começaram a pipocar mensagens sobre a ração, fiz exames nos outros animais e mandei suspender o trato com essa marca, mas não adiantou. Em dez dias perdi quatro cavalos e notifiquei o Mapa. Depois morreram mais quatro.”

Barros continua tratando os dez animais doentes, mas não sabe se vão sobreviver. No caso do garanhão de R$ 500 mil, RBA Capuccino do Jarg, o criador está coletando e congelando sêmen para não ter um prejuízo ainda maior.

Após as primeiras mortes, ele conta que recebeu a visita de um gerente da fábrica, que alegou que a morte teria sido causada por monensina, uma substância que mata rapidamente e tinha sido colocada na ração por uma ação de sabotagem de ex-funcionários. Depois, a empresa disse que iria abrir negociação, mas interrompeu o contato.

Márcia Lima e a égua Jade, que morreu contaminada — Foto: Arquivo pessoal
Márcia Lima e a égua Jade, que morreu contaminada — Foto: Arquivo pessoal

“Precisei fazer terapia”

A propagandista aposentada Márcia Lima, de Sorocaba, perdeu a égua mangalarga marchador de cinco anos que era seu xodó e estava hospedada em um haras de Itu, onde era alimentada com a Nutratta. Jade, avaliada em R$ 30 mil, estava prenhe de seis meses. O animal começou a apresentar sintomas em 6 de maio, parou de comer quatro dias depois, foi internado e morreu em seguida.

O veterinário percebeu que ela estava intoxicada. Perdeu gordura e massa muscular, apresentou um quadro hepático grave, problemas neurológicos e o tratamento não resolveu. Foi um crime. Precisei fazer terapia.”

O laudo da necropsia acusou insuficiência hepática por intoxicação exógena por aflatoxicosis e plantas tóxicas.

Cinderela, uma das éguas premiadas de Thiaguinho Noronha que morreu — Foto: Arquivo pessoal
Cinderela, uma das éguas premiadas de Thiaguinho Noronha que morreu — Foto: Arquivo pessoal

“Morte foi de um dia para o outro”

O cantor sertanejo Thiaguinho Noronha, dono do Haras Noronha, de Sorocaba (SP), tinha 48 cavalos em sua propriedade, mas perdeu 20 desde 5 de maio, quatro deles premiados em provas de marcha. A ração era usada há dois anos e meio. Ele conta que sobreviveram os animais que se alimentavam apenas no pasto.

No primeiro caso, a morte foi de um dia para o outro e achamos que era picada de animal, mas depois outras duas éguas começaram a apresentar sintomas e problemas neurológicos. Levamos para tratamento no hospital veterinário, mas não adiantou”, diz o músico, que integrou a banda de pagode Exaltasamba de 2003 a 2012.

Thiaguinho acrescenta que, além de seus cavalos, perdeu animais de clientes que estavam hospedados no haras. Além do prejuízo com os óbitos, ele diz que já investiu muito em medicamentos e necrópsias. “Parecia que o tratamento estava funcionando, mas depois o animal morria. O último morreu no domingo (12/7). O veterinário visita o haras todos os dias, mas a chance de sobrevivência dos que comeram a ração até agora está em 5%.”

Representantes da Nutratta estiveram no haras e também falaram em sabotagem na fábrica. A indústria trocou o lote de mais de 100 sacos que restava, depois voltou e retirou tudo, mas não ofereceu nenhum ressarcimento.

Perda de garanhão

Matheus Aparecido de Brito, pequeno criador de cavalos em São Bento do Sapucaí, na região da Serra da Mantiqueira, registrou a morte do seu garanhão de R$ 40 mil, o único dos cinco cavalos do sítio que era tratado com a ração da Nutratta. Fabuloso morreu na última sexta-feira, 30 dias depois de Brito trocar a ração por ter ouvido as notícias sobre a suspeita de contaminação.

“Parecia que ele tinha melhorado com a nova ração, mas há dez dias, ele parou de comer novamente. Ficou prostrado e o exame de sangue acusou problemas no fígado e intoxicação. O veterinário medicou com soro e vitaminas, mas logo virou um quadro neurológico. Fabuloso andava em círculos, batendo nas coisas, totalmente desorientado…”

Não foram apenas haras paulistas que registraram mortes. Houve casos relatados também em Minas Gerais, Rio de Janeiro e Alagoas. O Criatório alagoano Nova Alcatéia informou em suas redes sociais a morte de 69 animais até 7 de junho, entre eles um dos garanhões da raça mangalarga marchador mais premiados do Brasil, Quantum de Alcateia, avaliado em R$ 12 milhões.

“Nunca houve um episódio como esse”

O Mapa informou que o caso é inédito e que a análise das amostras da ração nos Laboratórios Federais de Defesa Agropecuária (LFDA) constataram a detecção de alcalóides pirrolizidínicos, como a monocrotalina, uma substância química encontrada em plantas crotalárias que é tóxica para os animais.

O veterinário de cavalos em Tatuí Walnei Miguel Paccola, integrante da Câmara Setorial de Equideocultura do Mapa, diz que realmente “nunca houve um episódio como esse” de mortandade de cavalos no país. Segundo ele, a literatura médica aponta que a fitotoxina pode ter efeitos até 90 dias depois da interrupção do trato com a ração, o que explica as novas mortes. Além disso, os animais podem apresentar neoplasias no futuro pela interação de dois ou mais fatores tóxicos.

Paccola, que fez várias necropsias em cavalos que comeram a ração da Nutratta nos últimos meses, a última nesta quarta (16/7), diz que que pode ter ocorrido uma falha de sintonia entre a medicina veterinária e a agronomia, que não pressentiram o perigo da crotalária, que é uma planta tóxica para os animais, mas é considerada um “adubo verde” largamente usado como cobertura de solo.

“Cultivamos uma planta tóxica que acabou chegando na ração, que tem muitos resíduos de soja e matéria orgânica proveniente de capins.”

Segundo ele, há variações, mas, em geral, os cavalos que morreram tiveram paralisação do fígado, distúrbio de coagulação, pararam de comer, apresentaram um quadro letárgico e o sistema nervoso alterado. “Com a intoxicação, o animal anda cambaleante em círculos e perde a visão.”

O veterinário diz ainda que o número de equinos mortos certamente é bem maior que o divulgado oficialmente pelo Mapa e vai ser difícil apurar o número correto porque não há uma obrigação do criador de notificar os casos.

A reportagem tentou ouvir a Nutratta, mas não houve resposta até a publicação. Em junho, a empresa disse que a interdição da fábrica era uma reação desproporcional e informou que estava tomando as medidas judiciais cabíveis.

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